Monday 27 July 2015

OS MONTEIROS DA MATA REAL DA MOITA LONGA

A Quinta da Moita Longa, era uma antiga mata real que fez parte do extremo sul dos coutos da Ordem de Cister e que no início da Nacionalidade confinava com o porto de mar templário da Atouguia. A primitiva mata real, formava um triângulo cujos vértices coincidiam com os actuais marcos da entrada da Quinta, Óbidos e Atouguia. Pertencia à Real Montaria de Óbidos, que englobava as matas de Óbidos, Lourinhã e Atouguia, conforme consta numa carta de privilégio concedida ao concelho de Óbidos, a 30 de Março de 1512:

“ D. Manuel etc. A quantos esta nossa carta virem fazemos saber que da parte do Conselho da vila de Óbidos nos foi apresentada uma carta d’El-Rei Dom João meu bisavô da qual o teor tal é como se segue/ Dom João por graça de Deus rei de Portugal e do Algarve a vós juízes e concelho d’Óbidos faço saber que da nossa parte pelos vossos procuradores que a nós enviastes a estas cortes que ora fizemos na cidade de Lisboa nos foram dados artigos especiais em que diziam que no tempo d’El-Rei D. Dinis d’El-Rei D. Afonso nossos avós e d’El-Rei nosso pai não haja aí mais que seis monteiros que uma até oito que guardavam as matas nossas que são nos termos dessa vila e que eram todos moradores desse termo e que quando algumas pessoas recebiam agravo dos ditos monteiros assim dessa vila como de fora que os juízes daí faziam deles direito porque a eles pertence a jurisdição e que El-Rei Dom Fernando nosso irmão que Deus perdoe fez além deste número outros muitos monteiros assim desse termo como da Lourinhã e da Atouguia e doutras partes (...) “

Mas como surgiram as matas reais?

Eram propriedades coutadas pelo rei, que tinham como principal objectivo a protecção da flora e o seu aproveitamento para a extracção de madeiras para a construção de navios, e a preservação da fauna, para o exercício da caça. 

No reinado de D. Dinis, as florestas começaram a expandir-se, projectando um futuro risonho para o reino. 

Eram atraídos para as florestas animais de grande porte, tais como o urso, o veado, o gamo, o lobo e o javali, e, outros animais menos corpulentos, criando assim um inovador ecossistema onde a fauna e a flora se acabariam por complementar. 

Ao mesmo tempo, estes espaços serviam na perfeição para o exercício de tácticas de treino militar, onde as árvores faziam o papel de obstáculo e os animais de grande porte, o de inimigos; e com os maiores e os mais pequeninos, aprenderam-se novas técnicas de camuflagem, construção de refúgios e planos de ataque e de defesa.

À caça de perseguição violenta a animais deu-se o nome de montaria. 

Causa no entanto muita estranheza o facto da Moita Longa – uma longa zona pantanosa coberta de moitas –, daí a designação, vir referida nas chancelarias do reino (Torre do Tombo), como uma montaria e uma mata real, uma vez que, como vem referido no livro, aqui não havia rigorosamente nada que o justificasse. Porquê uma mata real, se não era uma floresta? E por que motivo era mais vigiada que as restantes matas reais do reino?

No séc. XV, foi criada numa faixa essencialmente litoral e que se estendia do Minho ao Alentejo – a Coutada Velha –, que consistia num espaço florestal destinado para a caça dos reis e seus acólitos. 

A Coutada Velha era constituída pelas seguintes montarias reais: Soajo, Cabril, Terra de Santa Maria, Aveiro, Coimbra, Montemor-o-Velho, Penela, Leiria, Vila Nova de Ourém, Alcobaça, Torres Novas, Abrantes, Óbidos, Santarém, Alenquer, Coruche, Benavente, Sintra, Palmela, Setúbal, Montemor-o-Novo e Évora.

Por sua vez, em 1434, el-rei D. Duarte mandou colocar marcos nas matas reais da Real Montaria de Óbidos, e que eram as seguintes: Moita Longa, Mata Velha, Avenal, Ribeira rica, Faldreu, Navalhas, Delgada, Vade, Arrifes, Valbenfeito, Ameal, Cezedoira, Mata seca, Mata d’Amoreira, a do João Manuel Traquelay, Formigal, Cezareda, Zimbal, Ilha de Peniche, Alberguaria, e outras Matas algumas que por seus privilégios são coutadas.

Para a defesa destes ecossistemas, foi criado um corpo de funcionários administrativos que superintendiam nas matas reais: os monteiros. Estes, guiavam-se por um regulamento de medidas restritivas, proibitivas e punitivas em relação ao usufruto de todo o tipo de bens, produtos e espécies vivas existentes nas matas.

No topo da organização estava o monteiro-mor do reino, logo abaixo os monteiros-mor das montarias e, finalmente, os monteiros pequenos e guardadores das matas, constituídos por lavradores abastados, que ao alcançarem estes cargos, lhes era automaticamente atribuído o estatuto de nobreza civil, gozando ainda de privilégios sociais e institucionais.

Por outro lado, como guardadores das matas, tinham por obrigação zelar e controlar todos os recursos florestais, animais e aquíferos existentes, impedir a caça de javalis, veados ou cervos, impedir o corte de madeira ou de lenha e a apanha de cortiça, impedir a apascentação de porcos dos moradores dos concelhos. 

Faziam-se acompanhar de uma azeuma (lança curta e arrojadiça) e um sabujo (cão de caça grossa) para acompanhar o rei na caça, sempre que este o determinasse.

Os monteiros tinham ordem expressa para prender todos aqueles que não cumprissem essas determinações, havendo também penas pecuniárias a serem pagas pelos infractores.

A título de exemplo e como vem referido no Livro Vermelho de D. Afonso V, no que concerne às matas reais da Real Montaria de Óbidos, quem matasse porco, ou porca, ou bácoros, teria que pagar por cada cabeça dois mil reis e seria preso e degradado um ano para Arzila.

Quem fosse apanhado a matar coelhos, pagaria por cada cabeça cem reis, perdia os cães e o furão e seria preso até mercê de el-rei.

Por carrega de casca de madeira, a pena era de duzentos reis.

Quem fosse visto a correr a monte nas ditas matas, pagaria dois mil reis. 

O desgraçado que fosse apanhado a cortar um pau, pagava quatrocentos reis.

A preparação de uma montaria era cuidada até ao último pormenor. Moços e escudeiros deslocavam-se atempadamente ao local, avisando as aldeias vizinhas da chegada do rei e dos grandes senhores. Alvoroçavam-se as populações, engalanando as suas casas para tão alto acontecimento.

Enquanto isso, de lança em punho e traje a rigor, monteiros a cavalo buscavam e aprazavam a veação, trazendo consigo matilhas de cães excepcionalmente dotados: cães de busca (sabujos) e cães de correr (alãos), que eram conduzidos pelos moços.

O alvo preferido da montaria era o javali, embora outros animais corpulentos entrassem no seu âmbito, tais como o urso, o cervo, o gamo e o lobo, como se disse. Estes, dificultavam ao máximo todas as tarefas, muitas vezes até com vantagem, defendendo-se com as suas melhores armas: o javali com as presas, o urso com as unhas dos dedos, o cervo com os galhos. 

A montaria de uma veação, porco-montês, urso ou cervo, durava geralmente um dia. Mas, se por variadíssimos motivos, a luz do dia não fosse suficiente, durante a noite era feito um círculo com fogueiras e colocados cães de guarda em redor – não fossem os animais abalar.


O ambiente era de pompa e circunstância; mas também de muito respeito. 

As bestas transportavam os géneros e as alfaias para fazer a comida, e carregavam também o vestuário dos homens, pois consoante as condições climatéricas, havia muitas vezes necessidade de mudas.

Os tecidos eram riquíssimos e tudo obedecia a grandes despesas.

Na Idade Média, os monteiros eram convidados, especialmente durante as caçadas, para cear no paço do rei ou na casa dos grandes senhores, onde se compraziam a contar pela noite dentro, as boas ou más venturas de um dia bastante intenso, mas não menos excitante.



Moita Longa (Idade Média)

A ceia era marcada para as seis ou sete horas da tarde e era geralmente composta por dois pratos, para além dos acompanhamentos e sobremesas.

Sobre a mesa e sobre uma espécie de alcatifa (bancal ou mantel), era posta a toalha, que na maior parte das vezes não cobria a superfície total. Nas partes que ficavam a descoberto, em ambos os topos, eram colocadas toalhas mais pequenas, às quais hoje chamamos guardanapos.

Peças de ourivesaria enfeitavam a mesa – servindo simultaneamente como terrinas –, onde eram colocadas as facas, colheres (não havia garfos), sal, especiarias, etc. Sobre a toalha espalhavam-se também uma espécie de suportes – lingueiros –, constituídos por bicos de aves ou chifres de animais encabados em ouro e prata, onde se suspendiam línguas de serpente e uma série de pedras raras, tais como a ágata e a pedra serpentina, que tinham por objectivo detectar alimentos envenenados. No contacto com os alimentos, segundo a superstição, se os talismãs mudassem de cor, se se manchassem ou se começassem a sangrar, era sinal de que estavam impuros.

À ordem do rei ou do senhor, ninguém se sentava sem que primeiro lavasse as mãos. Para o efeito, eram trazidas à mesa justas ou gomis, geralmente em prata, que tanto podiam conter água simples como água de rosas ou de outro perfume.

Não existia norma para a distribuição dos lugares.



À frente de cada conviva era colocada uma grande metade de pão em forma arredondada, que depois da Idade Média foi substituída, primeiro pelo talhador de madeira e posteriormente pelo prato.

Dado o sinal a um servidor para que se pudesse dar início à ceia, este, dirigia-se de imediato à cozinha, que ficava fora do corpo da habitação.

Assim se evitavam dentro da casa cheiros, imundices e bichezas.

Estranha contradição: no final do repasto, as metades de pão que haviam servido como pratos, logicamente embebidas em molhos e outros detritos, eram atiradas aos cães que se encontravam ao redor da mesa, ou, então, levadas para fora para serem distribuídas por mendigos.

Em procissão e entrando na sala chefiados por um porteiro, vinham tocheiros e servidores, que traziam consigo bacias, terrinas e bandejas, com todo o tipo de iguarias.
            
A sopa era servida em escudelas de madeira, prata ou barro (tigelas) e para beber utilizavam-se vasos (copos de dimensão maior aos dos nossos dias).

Consoante o requinte do banquete, variava a abundância dos alimentos. 

A carne era o prato por excelência. Entre as carnes gordas, podiam-se contar vaca, porco, carneiro e cabrito; entre as carnes de caça: gamo, zebro, cervo, corço e lebre; entre as carnes de criação: galinhas, patos, gansos, pombos, faisões, pavões, rolas e coelhos; e ainda, uma grande variedade de aves: perdiz, abetarda, gru, pato bravo, cerceta, garça, maçarico, sisão, galeirão, calhandra; para além de chouriços e linguiças.

A carne podia ser confeccionada no espeto (assado), cozida (cozido), picada (desfeito), estufada (estufado) ou guisada com refogado (afogado). Não raras vezes era também servido badulaque, que consistia numa espécie de caldeirada de carneiro.

Se, porventura, a ceia coincidisse com um dos sessenta e oito dias do ano em que para os católicos era obrigatória a abstinência de carne, em sua substituição eram servidos pratos de peixe.

Os mais apreciados eram o linguado, a azevia e o salmonete, que alternavam com marisco, sendo a ostra a predilecta.

Mas, também a pescada (peixota) fazia parte dos hábitos alimentares, tal como a sardinha, congro, sável, lampreia, ruivo, pargo, atum, truta, solha, besugo, cação, rodovalho e goraz.

No que diz respeito aos mariscos, às ostras podiam-se juntar amêijoas, berbigões, lagostas e caranguejos. 

Em tempo de jejum, nada de ovos, queijo, manteiga, banha e vinho.

O peixe era geralmente servido frito ou em empadas. Alqueires de farinha eram usados para a massa das empadas, e, como condimentos, eram servidas laranjas azedas (a laranja doce só foi trazida para Portugal por Vasco da Gama), salsa, azeite, vinagre e sal. O peixe seco salgado e defumado também entrava nos hábitos alimentares.

Aos condimentos supracitados, juntavam-se as ervas de cheiro, salsa, coentros, hortelã e sumos de limão, de agraço, de vinagre, de cebola e de pinhões.

As hortaliças e os legumes raramente iam à mesa do rei e dos senhores, embora o mesmo já não se possa dizer relativamente ao povo, onde também couves, favas, ervilhas e feijões eram consumidos como complementos do pão.   

Para as classes superiores faziam também parte das iguarias brócolos, alfaces, pepinos, rabanetes, rábanos, cogumelos, cenouras, nabos e espargos.

O pão era de trigo, pouco crescido, geralmente de forma circular, e o seu peso oscilava entre 150 e 750 gramas.

Os ovos eram cozidos, escalfados ou mexidos.

A ceia, à boa maneira portuguesa, era regada com vinho, embora fosse aconselhado e apenas aconselhado, moderação.

D. Duarte, no Leal Conselheiro, recomenda mesmo que em cada vaso duas partes sejam de água e que não se beba mais que duas ou três vezes.

Uma recomendação que não se aplicava aos conventos, onde o uso do vinho não suscitava críticas.

Para as sobremesas havia fruta e doces feitos à base de lacticínios, que no entanto não eram aconselhados: que não se comam natas nem outras viandas de leite, consideradas húmidas e por isso nocivas à saúde; ou, a comê-las, que seja em pouca quantidade e sempre no fim das refeições; e que jamais se beba depois de as ter tomado.

Geralmente os doces eram confeccionados à base de mel devido ao elevado preço do açúcar.

Só a partir dos séculos XVII e XVIII se iria desenvolver a afamada indústria doceira portuguesa.

Serviam-se biscoitos de flor de laranjeira, pasteis de leite, pão-de-ló e bolos feitos à base de mel, farinha e especiarias (farteis).

Os ovos entravam praticamente em todas as receitas de doçaria, sendo as mais comuns: os canudos e os ovos de laço.

A fruta, tinha basicamente uma função dietética.

A sua variedade não fugia muito à dos dias de hoje.
   
A laranja azeda era muito mais utilizada que o limão, embora com funções semelhantes, pelo facto deste último ser considerado muito frio e agudo.

Também desaconselhado era o consumo de pêssegos e cerejas, por se julgarem vianda húmida.

Ao lado das frutas frescas vinham sempre os frutos secos e as conservas de doces de fruta.

Faziam parte do quotidiano, figos secos, passas de uvas, amêndoas, nozes, alfarrobas, castanhas, azeitonas, a par de conservas e doces de cidra (casquinhas, diacidrão), pêssego (pessegada), limão, pêra (perinhas, perada), abóbora e marmelo (marmelada, bocados, almivar de marmelo), e até de alface se confeccionava uma conserva especial conhecida por talos.

Terminada a ceia e uma vez que chá, café e chocolate eram desconhecidos, ao serão, saboreavam-se refrescos feitos à base de vinho e de frutas.

Como se pode verificar, a alimentação era parca em vitaminas, muito especialmente D e consideravelmente A e C. Isso implicava muitas vezes uma fraca resistência do organismo humano às mais diversas infecções.

Vejamos alguns exemplos extremamente caricatos, da forma mais prática e menos dispendiosa de como eram combatidas as infecções, sem recurso à medicina, cirurgia (que existia), orações e encantamentos ou actos de bruxaria:

Para as dores e inflamação dos olhos, podia ser aplicado um colírio de fel de andorinha, fel de perdiz, semente de funcho, erva arruda e vinho branco, claras e gemas de ovos, leite de cadela e de mulher, rosmaninho, pulmão de carneiro, cabra ou lebre, cinzas de esterco humano e urina amassada com mel.

Quanto às dores de dentes, aplicava-se esterco de porco, leite de cadela, fígado quente de doninha ou carne de cobra cozida depois de muito vergastada.

Para os desarranjos de ventre, servia-se fígado de bode assado mergulhado em vinagre forte, acompanhado de biscoitos; ovos escalfados em vinagre; rolas assadas e recheadas de cera, acompanhadas de vinho tinto ou água da chuva – desde que nela fosse previamente mergulhado um ferro em brasa antes de ser ingerida. Ao mesmo tempo, não era desaconselhável untar as ilhargas e as costas com pó de esterco de cabra misturado com claras de ovo. 

Se a diarreia voltasse ou não passasse, então sugeriam-se pezinhos de perdiz torrados e moídos em vinho ou, em alternativa, ovos assados com sumagre. Não era mau de todo também, esfregar o estômago e o ventre com claras de ovo com esterco de cabra bem peneirado, atando por cima uma ligadura. 

Em último caso, submetia-se o traseiro do paciente aos vapores de vinagre cozido com folhas de barbasco. 

Para as febres, inalavam-se gotas de sumo de erva primavera, na proporção de uma casca de noz. 

Aplicava-se um emplastro de minhocas fritas em manteiga, para as tetas das mulheres quando parirem,.

Nas Chancelarias da Torre do Tombo estão os nomes de todos os monteiros da Mata Real da Moita Longa. Uma vez que a lista é muito extensa, citam-se apenas alguns:
   
O primeiro nome que aparece é João Esteves, sucedendo-lhe seu filho Estêvão Anes (11 de Setembro de 1450).

Sucedem-se João Anes, o Moço (6 de Agosto de 1458), André Pires (15 de Agosto de 1458), Afonso Pires (5 de Agosto de 1459), Martim Pires (11 de Julho de 1468), Diogo Afonso (1474), Álvaro Migueis (26 de Novembro de 1479), Álvaro Fernandes (26 de Novembro de 1479), Diogo Anes (10 de Outubro de 1481), Pedro Fernandes (22 de Agosto de 1487), Rodrigo Anes (22 de Agosto de 1487), Tomé Enes (16 de Junho d 1488), Pedro Fernandes (28 de Janeiro de 1500), Pedro Afonso (30 de Setembro de 1503), Martim Fernandes (20 de Março de 1506), João Álvares (26 de Junho de 1522), Álvaro Fernandes (24 de Fevereiro de 1524), Martim Fernandes (18 de Outubro de 1528), Rodrigo Afonso (20 de Outubro de 1528).

No ano de 1533, foi doado um pedaço da Mata Real da Moita Longa ao juiz da Alfândega de Lisboa, André da Silveira do Pó.
     

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